Friday 4 December 2009

William Turner, Clouds.


    Segue o teu destino,
    Rega as tuas plantas,
    Ama as tuas rosas.
    O resto é a sombra
    De árvores alheias.

    A realidade
    Sempre é mais ou menos
    Do que nós queremos.
    Só nós somos sempre
    Iguais a nós-próprios.

    Suave é viver só.
    Grande e nobre é sempre
    Viver simplesmente.
    Deixa a dor nas aras
    Como ex-voto aos deuses.

    Vê de longe a vida.
    Nunca a interrogues.
    Ela nada pode
    Dizer-te. A resposta
    Está além dos deuses.

    Mas serenamente
    Imita o Olimpo
    No teu coração.
    Os deuses são deuses
    Porque não se pensam.

    Ricardo Reis, 1-7-1916

Thursday 8 October 2009

Passagem das Horas


Não sei sentir, não sei ser humano,
não sei conviver de dentro da alma triste, com os homens, meus irmãos na terra.
Não sei ser útil, mesmo sentindo ser prático, quotidiano, nítido.
Vi todas as coisas e maravilhei-me de tudo.
Mas tudo ou nada sobrou ou foi pouco, não sei qual, e eu sofri.
Eu vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos.
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
Amei e odiei como toda a gente.
Mas para toda agente isso foi normal e institivo.
Para mim sempre foi a excepção, o choque, a válvula, o espasmo.
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto demais ou de menos.
Seja como for a vida, de tão interessante que é a todos os momentos,
a vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
a dar vontade de dar pulos, de ficar no chão,
de sair para fora de todas as casas,
de todas as lógicas, de todas as sacadas,
e ir ser selvagem entre árvores e esquecimentos.

Álvaro de Campos, Passagem das Horas

Saturday 8 August 2009

Andei por terras de Sua Majestade



Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero
Álvaro de Campos, Passagem das Horas

Thursday 11 June 2009

Não sei.

Não sei. Falta-me um sentido, um tacto

Para a vida, para o amor, para a glória...

Para que serve qualquer história,

Ou qualquer facto?

Estou só, só como ninguém ainda esteve,

Oco dentro de mim, sem depois nem antes.

Parece que passam sem ver-me os instantes,

Mas passam sem que o seu passo seja leve.

Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li.

Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.

O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir

É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.

Não ser nada, ser uma figura de romance,

Sem vida, sem morte material, uma ideia,

Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,

Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.

1-3-1917

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944



Sunday 29 March 2009


Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do ocaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só, no silêncio cercado pelo som branco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.

Fernando Pessoa, Cancioneiro.

Wednesday 25 March 2009