Saturday, 10 July 2010

Van Gogh (1890). Old Man in Sorrow (On the Threshold of Eternity). Óleo sobre tela.


Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei

Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,

Consanguinidade com o mistério das coisas, choque

Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,

A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,

A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair

Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,

E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,

Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,

E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,

Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
E preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas…

Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,

Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca…
Que há-de ser de mim? Que há-de ser de mim?

(…)
Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.

Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.

Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.

Estou no caminho de todos e esbarram comigo.

(…)

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco — não sei qual — e eu sofri.

Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,

E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.

Amei e odiei como toda a gente,

Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,

E para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula, o espasmo.


Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.

Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,

Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo.

Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,

(…)

Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
E sê frescor e alívio, ó noite, sobre a minha fronte…


Álvaro de Campos, A Passagem das Horas, In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002

(Para ver o poema completo, clique aqui)